10/06/25 por Caroline Adorno em Artigos

Doação e Segurança Jurídica: Quando o Ato Pode Ser Invalidado?

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A doação, enquanto manifestação de liberalidade patrimonial, é estruturada como um ato jurídico unilateral de natureza gratuita, por meio do qual um sujeito de direito transfere parte de seu acervo patrimonial a outrem, independentemente de qualquer contraprestação. Nos termos dos artigos 538 a 564 do Código Civil Brasileiro, tal modalidade negocial encontra previsão normativa expressa, com especial relevância no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões. Suas classificações ordinárias abarcam a doação pura (sem encargos ou condições) e a doação onerosa (com cláusulas de encargo impostas ao donatário).

A higidez da doação exige a observância dos requisitos de validade dos negócios jurídicos, notadamente: agente capaz, objeto lícito e possível, forma prescrita ou não defesa em lei. Para bens imóveis, exige-se a escritura pública, conforme impõe o art. 108 do Código Civil. Ademais, o ato deve ser imune a vícios de vontade e não pode comprometer a esfera jurídica de terceiros legitimados, como herdeiros necessários e credores.

1. Incapacidade do Doador.

O primeiro vetor de invalidação diz respeito à ausência de capacidade civil do doador. Conforme o art. 3º do CC, a pessoa absolutamente incapaz (como menores de 16 anos ou interditados por deficiência mental) não possui aptidão para a prática de atos da vida civil. Ainda, os relativamente incapazes necessitam de assistência para que seus atos tenham validade jurídica. Nos casos em que a doação for realizada por pessoa incapaz, sem a devida representação ou assistência, o negócio será nulo ou anulável, de acordo com a natureza da incapacidade.

A verificação da incapacidade superveniente ao momento da liberalidade, como nos casos de enfermidade mental não declarada, pode ser objeto de ação judicial, instruída por prova pericial e testemunhal, para demonstrar a inexistência de discernimento necessário.

2. Vícios de Consentimento.

Os vícios da vontade constituem causas clássicas de anulação do negócio jurídico, conforme tipificado no art. 171, II, do Código Civil. Destacam-se:

  • Erro substancial: caracteriza-se pela falsa percepção da realidade que incide sobre elemento essencial do negócio, como a identidade do beneficiário ou a natureza do bem doado. O erro deve ser determinante e escusável.
  • Dolo: configura-se como induzimento malicioso, proveniente do donatário ou de terceiro, com o objetivo de viciar a manifestação voluntária do doador. 
  • Coação: pressupõe a existência de ameaça injusta e grave, dirigida à pessoa do doador ou de seus próximos, capaz de gerar temor fundado de prejuízo iminente. Trata-se de vício que anula a espontaneidade do ato negocial.
  • Estado de perigo: verifica-se quando o doador, premido por risco concreto de dano grave, celebra o negócio em condições desfavoráveis, sendo o donatário conhecedor dessa situação de urgência.
  • Lesão: presente quando o doador, em situação de necessidade, inexperiência ou fragilidade, celebra a liberalidade com manifesta desproporção entre os valores envolvidos, auferindo o donatário vantagem exagerada.

Em casos de doação envolvendo relações familiares, é possível que existam fatores emocionais e afetivos que dificultem uma avaliação objetiva da manifestação da vontade do doador. Por isso, é necessária atenção especial no momento de analisar se a vontade do doador foi realmente livre e consciente, considerando o contexto familiar, os vínculos afetivos e eventuais situações de dependência ou pressão emocional que possam comprometer sua autonomia.

3. Doação Inoficiosa

A doação que excede a parte disponível do patrimônio do doador, em detrimento da legítima dos herdeiros necessários, incorre em inoficiosidade. O art. 549 do CC dispõe com clareza:

"Nula é a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento."

A aferição da inoficiosidade não se dá no momento da morte, mas na data da efetiva liberalidade, conforme sedimentado pela Terceira Turma do STJ no REsp 1.554.986/MG. A decisão, relatada pela Ministra Nancy Andrighi, firmou que é vedado ao doador comprometer a legítima dos herdeiros, ainda que o patrimônio remanescente pareça suficiente em momento posterior. 

Nesses casos, os herdeiros podem ajuizar ação declaratória de nulidade.

4. Fraude contra Credores.

A doação também poderá ser anulada quando realizada com o propósito de frustrar a satisfação de obrigações patrimoniais. A fraude contra credores ocorre quando o devedor, já insolvente ou com a insolvência iminente, reduz seu patrimônio com o intuito de subtrair-se à execução.

 

 

5. Doação de Cônjuge sem Anuência.

Nos regimes de bens que exigem administração conjunta, como a comunhão universal e a parcial de bens, a alienação ou doação de bens comuns depende do consentimento de ambos os cônjuges, conforme previsão do art. 1.647, IV, do Código Civil. Assim, quando um dos cônjuges realiza doação sem a anuência do outro, o negócio jurídico pode ser anulado, especialmente se houver indícios de que o objetivo era prejudicar o consorte.

Essa nulidade é ainda mais relevante em contextos de dissolução da sociedade conjugal, nos quais a liberalidade possa representar tentativa de fraude à meação. 

A doação também poderá ser anulada quando realizada com o propósito de frustrar a satisfação de obrigações patrimoniais.

Conclusão.

Embora constitua expressão legítima da autonomia privada e do planejamento patrimonial, a doação encontra balizas jurídicas que a submetem ao controle de validade e eficácia. A proteção da legítima dos herdeiros, a higidez da vontade negocial e a preservação da função social do patrimônio impõem restrições às liberalidades que desrespeitem essas diretrizes. A anulação do ato de doação, portanto, emerge como instrumento de recomposição do equilíbrio jurídico nas hipóteses de desvio da finalidade do instituto.

Diante disso, ressalta-se a importância de buscar orientação jurídica especializada, uma vez que a identificação dos vícios e a formulação da tese jurídica adequada exigem conhecimento técnico apurado. 

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