27/12/23 por Pedro Garcia em Artigos , Direito imobiliário

Fraude à execução segundo o entendimento do superior tribunal de justiça

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Instituto próprio de Direito Processual Civil, a fraude à execução é um mecanismo processual utilizado para coibir e corrigir ilegalidades praticadas por devedores. Possui uma certa semelhança com a fraude contra credores, instituto de Direito Civil, mas não se confundem. 

Enquanto a fraude contra credores é um vício, ou seja, um defeito do negócio jurídico, que o torna anulável e depende de ação própria para reconhecimento (chamada de ação pauliana ou ação revocatória), a fraude à execução é um instituto que exige prévio processo judicial instaurado e resulta na ineficácia do negócio jurídico em benefício do credor. 

Em termos mais simples, a fraude à execução é um remédio legal que o credor possui para receber aquilo que lhe é devido, ainda que o devedor tente se desfazer de seu patrimônio. 

Para melhor entendimento, imagine a seguinte situação: João ingressou com uma ação judicial de cobrança em face de Pedro para receber R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) que lhe é devido.  

Pedro, vendo que João ingressou com a ação e sabendo que terá de pagar João, vende o único bem que possui: um imóvel de R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais) para um terceiro qualquer que se interessou em adquiri-lo. Recebendo o valor, Pedro, a fim de não deixar rastros, retira do banco, de modo que João não possa encontrá-lo. 

Pois bem, passada a fase de conhecimento e chegada a fase de execução do processo, João verifica que Pedro não possui nenhum bem em seu nome, frustrando sua expectativa de recebimento. 

No entanto, lembra que Pedro tinha um imóvel anteriormente. Assim, em consulta no Cartório de Registro de Imóveis competente, verifica que Pedro, no decorrer do processo, alienou o bem a terceiro. 

Nesse caso, como à época da venda do imóvel já tramitava contra Pedro a ação de cobrança, essa venda é caracterizada como fraude à execução, pois, ao vender o bem, Pedro ficou insolvente, sem recursos para fazer jus ao valor que devia a João. 

Em decorrência disso, a venda operada é ineficaz perante João, isto é, não produz efeitos contra ele. É como se ela não tivesse ocorrido; podendo, portanto, João, requerer o imóvel para si. Esse é o instituto da fraude à execução. 

Nesse exemplo citado, pode ainda surgir a seguinte dúvida: mas se o bem vendido por Pedro era o seu único imóvel, ele não seria considerado bem de família, e, portanto, impenhorável? 

Nesse caso, não. Em se tratando de má-fé do devedor, que se caracteriza pelo abuso de direito, afasta-se a norma protetiva do bem de família. Nesse sentido, ver: Ag. Int. no REsp. n.º 2.030.295/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/04/2023).

Superado esse ponto, diferente do que se pensa, em razão do nome do instituto, para que seja caracterizada a fraude à execução não é necessário ter uma “execução” em andamento. Basta que exista um processo em curso e que a execução seja frustrada por um dos motivos elencados abaixo, conforme preceitua o artigo 792 do Código de Processo Civil.

Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução: 

I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver; 

II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828 ; 

III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude; 

IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;

Especificamente quanto ao inciso IV, verifica-se de sua redação que a alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência. 

Verifica-se que o legislador utilizou a palavra “tramitava”, o que, de uma leitura clara do dispositivo, entende-se que basta a existência de uma ação judicial em trâmite para ser considerada a fraude. 

Todavia, o tema não é pacífico. Há controvérsia na jurisprudência no sentido de que se é necessária a citação válida para configurar a fraude à execução ou se somente a mera existência do processo pode configurá-la. 

E a discussão não deixa de ser relevante, pois as duas teses são bastante defensáveis. A primeira, argumenta no seguinte sentido: de fato, o dispositivo legal utiliza a palavra “tramitava”. No entanto, o devedor, para ter ciência do processo, deve ser citado, pois, antes da citação, não possui meios de saber que está sendo processado, e, portanto, não pode o adquirente (exemplo, de um imóvel) incorrer nas penas de ter o negócio declarado ineficaz. 

Note que essa linha de pensamento se preocupa com o adquirente, pois, como demonstrado no exemplo acima, caso o devedor aja em fraude à execução, a venda do imóvel é declarada ineficaz em benefício do credor, ou seja, o comprador (terceiro) que não verificou se o vendedor tinha ações judiciais de cobrança em trâmite perderá o imóvel para o credor do vendedor. Portanto, aqui se tem uma certa tolerância para com o terceiro adquirente. 

Por outro lado, a segunda corrente entende que o devedor já está ciente do seu ato ilícito (dever e não pagar) desde a sua constituição, independentemente de ação judicial, caindo por terra, portanto, o argumento de que é necessária a citação do devedor para que este esteja ciente da demanda contra si. 

Assim, aproveitando o exemplo dado inicialmente, se o executado, sabendo que possui débitos e que pode, a qualquer momento, ter o seu patrimônio penhorado, transfere seus bens a outrem, ainda que não haja citação válida no processo, é nítida a sua má-fé, devendo a alienação ser configurada fraude à execução. 

Nesse diapasão, em análise das decisões judiciais sobre o tema, verifica-se que a adoção de um entendimento ou de outro dependerá do caso concreto. Conforme já entendeu o Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CHEQUE. FRAUDE À EXECUÇÃO CONFIGURADA. TRANSFERÊNCIA DE BENS DE ASCENDENTE PARA DESCENDENTE. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. [...]. No caso, não há terceiro de boa-fé a ser protegido, havendo elementos nos autos a indicar que a devedora doou intencionalmente e de má-fé todo o patrimônio ao próprio filho, quando ambos já tinham ciência da demanda capaz de reduzi-la à insolvência. 3. Assim, à vista das peculiaridades do caso concreto, bem delineadas na decisão do Juízo a quo, deve ser confirmada a decretação da fraude à execução, mesmo que o ato da transferência dos bens tenha ocorrido antes da citação formal da devedora no processo de execução. 4. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ - AgInt no REsp: 1885750 AM 2020/0182626-0, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 20/04/2021, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/04/2021.)

Nesse caso, em interpretação sistemática da norma, entendeu o STJ que mesmo não havendo citação da devedora, por esta ter conhecimento da demanda capaz de reduzi-la à insolvência, isso, por si só, caracterizou sua má-fé, importando a alienação em fraude à execução. Importante salientar que no julgado acima não havia terceiro de boa-fé a ser protegido.

Por outro lado, entendendo pela necessidade de citação:

PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. FRAUDE. AUSÊNCIA CITAÇÃO DO EXECUTADO. IMPRESCINDIBILIDADE. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7 DO STJ. 1. O STJ que, para a configuração de venda em fraude à execução, urge-se que o então alienante tenha, anteriormente à venda, sido regularmente citado. 2. Indiscutivelmente, não se pode aceitar a caracterização de alienação em fraude contra execução fiscal quando o devedor não foi regularmente citado para responder pela dívida em juízo. [...]. (STJ - REsp: 1763076 SP 2018/0220676-4, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 12/02/2019, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/03/2019.)

E a divergência não é somente no Tribunal Superior. Divergem também os próprios Tribunais de Justiça. Conforme decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: 

admissível o reconhecimento da alienação ou oneração em fraude à execução, antes mesmo da citação formal do devedor do processo de execução, quando demonstrada a prática de alienação ou oneração de bem com má-fé, tanto do devedor alienante, como do terceiro adquirente, por negócio jurídico ajustado após o ajuizamento da ação capaz de reduzir o devedor a insolvência, da qual ambos tinham ciência, embora a parte devedora não houvesse sido citada formalmente. (TJ-SP - AI: 2143142-62.2022.8.26.0000, Relator: Rebello Pinho, Data de Julgamento: 11/08/2022, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 11/08/2022.)  

Já em sentido oposto, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás: “A alienação ou oneração do bem, para que seja considerada em fraude de execução, deverá ocorrer após a citação válida do devedor, seja no curso da ação de execução, seja durante o processo de conhecimento”. (TJ-GO - AIRESP: 01040272520208090000, Relator: Des. ORLOFF NEVES ROCHA, Data de Julgamento: 29/06/2020, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 29/06/2020.) 

Apesar das divergências, em análise das decisões, verifica-se que aquelas que concluem pela desnecessidade da citação prévia do devedor fundamentam que o simples fato de a alienação ter ocorrido com má-fé (tanto do devedor, quanto do terceiro adquirente), torna a citação prévia irrelevante. 

Esse entendimento, inclusive, coaduna com a Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça, que diz: “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. 

Assim, predomina o entendimento de que a má-fé é o elemento principal caracterizador do instituto da fraude à execução, que, quando presente, torna a citação prévia um requisito secundário. 

Noutro giro, no que tange especificamente às execuções fiscais, o Superior Tribunal de Justiça, por meio do Tema Repetitivo 290, firmou a tese de que a simples alienação ou oneração de bens, ou rendas, sem reserva de meios para quitação do débito, gera presunção absoluta de fraude à execução, mesmo diante da boa-fé do terceiro adquirente e ainda que não haja registro de penhora do bem alienado. 

De acordo com a tese, a partir de 09.06.2005, data de início da vigência da Lei Complementar n.º 118/2005, basta a inscrição do débito em dívida ativa para estar configurada a fraude à execução, não havendo necessidade de prévia propositura de processo judicial, bem como comprovação de má-fé do terceiro adquirente. 

Portanto, conforme se depreende do entendimento dos tribunais e do próprio STJ, a tendência é preservar o direito de crédito dos credores, principalmente do fisco, sendo incumbência do adquirente a verificação da idoneidade financeira do vendedor. 

Dessa forma, antes de se adquirir qualquer bem de valor considerável é essencial a realização da competente due diligence, tanto do bem a ser adquirido quanto da pessoa do vendedor.  

Ficando comprovado que o vendedor possui débitos não pagos, o fato por si só demonstra um alto risco na aquisição do bem pretendido, sendo aconselhado, caso ainda assim se decida pelo prosseguimento do negócio, a exigência de garantia bastante para o cumprimento das obrigações que até então possui. 

 

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