Regime de Bens e Planejamento Sucessório

O casamento é muito mais do que a união de duas pessoas; é também a formação de um patrimônio compartilhado ou individual, dependendo do regime de bens escolhido. Essa escolha, muitas vezes vista apenas como uma formalidade antes do casamento, tem impacto direto não apenas na administração do patrimônio durante a vida do casal, mas também na forma como os bens serão transmitidos aos herdeiros após o falecimento de um dos cônjuges.
Falar em planejamento sucessório é falar em escolhas que impactam o futuro da família e a forma como o patrimônio será transmitido. Entre essas escolhas, uma das mais relevantes — e muitas vezes negligenciada — é a definição do regime de bens do casamento ou da união estável. É ele que determina o que será considerado patrimônio comum, o que ficará como patrimônio exclusivo de cada cônjuge ou companheiro e, no fim das contas, quem terá direito a quê em caso de divórcio ou falecimento.
Não se trata apenas de uma questão formal, registrada em cartório. O regime de bens é a base sobre a qual se constrói a divisão de patrimônio, a definição da meação e a própria ordem sucessória. Cada regime traz consequências jurídicas diferentes, que podem simplificar ou complicar muito a vida de quem fica — ou de quem sobrevive.
Comunhão parcial de bens
É o regime mais comum, justamente porque é o que a lei impõe quando não há pacto antenupcial — e também o que se aplica, por padrão, às uniões estáveis sem contrato escrito. Aqui, só entram na comunhão os bens adquiridos durante o casamento ou a união.
No divórcio, divide-se o que foi conquistado a dois. No falecimento, o cônjuge ou companheiro sobrevivente tem direito à metade dos bens comuns (meação) e pode ainda concorrer como herdeiro nos bens particulares do falecido. Esse detalhe é fundamental no planejamento sucessório, pois afeta diretamente o cálculo da herança e o alcance das liberalidades feitas em testamento.
O STJ já consolidou o entendimento de que, nos bens comuns, não há concorrência sucessória: o sobrevivente fica apenas com a meação. Já nos bens particulares, ele herda junto com os descendentes.
Comunhão universal de bens
Aqui, a regra é outra: praticamente todo o patrimônio — presente e futuro — é comum ao casal, salvo exceções pontuais previstas em lei. É um regime que exige pacto antenupcial e que, por muito tempo, foi preferido em casamentos mais tradicionais.
No divórcio, tudo se divide ao meio. No falecimento, o sobrevivente já leva metade de todo o patrimônio por meação, e a sucessão recai apenas sobre a outra metade. Isso pode reduzir bastante a herança, mas também pode gerar dificuldades em famílias recompostas, já que bens anteriores ao casamento também entram na comunhão.
Separação convencional de bens
Na separação convencional, cada um mantém seus bens de forma independente. Não há meação, salvo acordos específicos. Mas aqui mora um ponto sensível: embora os bens não se comuniquem, o cônjuge sobrevivente continua sendo herdeiro necessário e concorre com os descendentes na herança.
O STJ já confirmou reiteradas vezes esse entendimento: a separação convencional não afasta a qualidade de herdeiro. Esse é um equívoco comum em planejamentos mal elaborados, quando casais acreditam que esse regime evita qualquer participação sucessória do outro.
Separação obrigatória de bens
De acordo com o art. 1.641 do Código Civil, o regime da separação obrigatória de bens deve ser adotado, mesmo contra a vontade dos noivos ou companheiros, nas seguintes situações:
- Casamento de pessoas maiores de 70 anos;
- Casamento realizado sem observância das causas suspensivas (como o viúvo ou viúva que ainda não fez inventário dos bens do falecido);
- Casamento que depende de autorização judicial (por exemplo, menores entre 16 e 18 anos).
Em teoria, não há comunhão. Porém, a Súmula 377 do STF abriu espaço para a comunicação dos bens adquiridos durante o casamento — entendimento que o STJ vem mitigando, exigindo prova de esforço comum e admitindo pactos mais restritivos que afastem essa comunicabilidade.
Na sucessão, a regra é diferente da separação convencional: o cônjuge sobrevivente não concorre com descendentes ou ascendentes. Esse detalhe pode alterar completamente a estratégia de um planejamento sucessório.
Participação final nos aquestos
É um regime híbrido, raro na prática, mas juridicamente interessante. Durante o casamento, cada um administra seu patrimônio separadamente. No fim — seja por divórcio ou falecimento — apura-se o que cada um adquiriu e faz-se uma compensação, dividindo os aquestos.
Na sucessão, o sobrevivente primeiro recebe sua “meação” nesse cálculo final e, só então, participa da herança nos termos gerais do Código Civil. Por ser um regime complexo, exige controle minucioso de patrimônio, o que na prática limita seu uso.
União estável: com e sem contrato
A união estável, tão comum na vida prática, merece atenção especial. Se não houver contrato escrito estipulando regime de bens, aplica-se automaticamente a comunhão parcial.
No entanto, os companheiros podem escolher livremente qualquer regime de bens — comunhão universal, separação convencional ou participação final nos aquestos — desde que isso seja formalizado em contrato escrito, lavrado em cartório.
É importante destacar que os efeitos do regime escolhido só valem a partir da assinatura do contrato, ou seja, não retroagem para os bens adquiridos antes da formalização.
E, desde a decisão do STF no Tema 809, não há mais distinção entre casamento e união estável para fins de sucessão: o companheiro herda nas mesmas condições do cônjuge.
Na prática:
- Sem contrato: aplica-se a comunhão parcial.
- Com contrato: vale o regime escolhido, mas apenas para os bens e efeitos patrimoniais posteriores à formalização.
Pontos que valem para todos os regimes
Independentemente do regime, alguns direitos atravessam todos os cenários:
- O cônjuge e o companheiro são herdeiros necessários e têm proteção mínima da lei.
- O direito real de habitação garante ao sobrevivente o uso do imóvel residencial da família, mesmo que ele caiba aos herdeiros na partilha.
- O testamento só pode dispor de metade do patrimônio (a outra metade é a legítima, reservada aos herdeiros necessários).
O que os tribunais têm dito
- O STF equiparou a união estável ao casamento no Tema 809, afastando qualquer discriminação sucessória.
- O STJ reafirmou que, na separação convencional, o cônjuge concorre com descendentes.
- Na separação obrigatória, vale a Súmula 377, mas de forma qualificada: só há comunicação de bens adquiridos se houver prova de esforço comum.
- O direito real de habitação vem sendo interpretado de maneira protetiva, mas também sujeito a limitações quando não cumpre sua função social.
Conclusão
O regime de bens não é uma simples opção burocrática feita no cartório. Ele define a linha entre o que será meação e o que será herança, e, portanto, influencia profundamente a margem de escolha no planejamento sucessório.
Mais do que isso, ele também pode repercutir em situações práticas que muitas vezes passam despercebidas.
Mesmo quando um bem pertence originalmente à família de apenas um dos cônjuges ou companheiros, alguns atos podem resultar em comunicabilidade no regime de bens, especialmente se não houver cláusulas restritivas ou planejamento adequado. Entre os principais exemplos, estão:
- Compra e venda de quotas sociais: se adquiridas durante a constância do casamento/união, podem integrar o patrimônio comum.
- Integralização de imóveis ou outros bens em sociedades: ao serem utilizados como capital social, podem gerar reflexos patrimoniais que envolvem a meação.
- Reinvestimento de heranças ou doações: ainda que o bem recebido seja particular, sua aplicação em empreendimentos comuns pode suscitar questionamentos sobre comunicação.
- Aquisição de bens em nome de um só cônjuge: se feita com recursos comuns, mesmo que registrados apenas em um CPF, pode ser considerada patrimônio do casal.
Em outras palavras, mesmo que um patrimônio tenha origem exclusivamente familiar de um dos cônjuges, a forma como ele é utilizado ou transferido pode repercutir no regime de bens, criando direitos para o outro.
Planejar de forma responsável significa alinhar o regime de bens a outros instrumentos, como contratos de convivência, pactos antenupciais, testamentos, doações e estruturas societárias. É essa integração que permite dar previsibilidade às regras da sucessão e evitar surpresas no futuro.
No fim, não se trata apenas de proteger patrimônio, mas de garantir que as escolhas feitas em vida reflitam na sucessão de maneira justa e pacífica, preservando a harmonia familiar e reduzindo os riscos de litígios.