13/11/25 por Cristina Viana em Artigos

Prevenção e responsabilidade nos vícios construtivos: o papel de cada parte na durabilidade das edificações

Prevenção e responsabilidade nos vícios construtivos: o papel de cada parte na durabilidade das edificações Prevenção e responsabilidade nos vícios construtivos: o papel de cada parte na durabilidade das edificações - Icon

A discussão sobre vícios construtivos ganhou novos contornos no mercado imobiliário brasileiro. O aumento das demandas judiciais envolvendo falhas em edificações trouxe à tona um tema que, embora técnico, tem impactos profundos sobre a previsibilidade do setor: até onde vai a responsabilidade das construtoras e incorporadoras — e onde começa a do usuário?

Nos últimos anos, o Superior Tribunal de Justiça tem firmado entendimentos que ampliam significativamente o alcance da responsabilidade das empresas, especialmente ao interpretar o art. 618 do Código Civil e o art. 205 no contexto dos vícios de construção. O que antes se restringia à solidez e segurança da obra — com garantia quinquenal — hoje se projeta para além dos cinco anos, alcançando hipóteses de indenização por vícios ocultos detectados anos após a entrega do imóvel.

Essa evolução, sob o prisma da proteção ao consumidor, é legítima. Mas o problema surge quando a aplicação indiscriminada de prazos e conceitos transforma a boa-fé das partes em insegurança jurídica. O setor produtivo, que opera com prazos de garantia e ciclos construtivos definidos, passa a enfrentar demandas tardias e, muitas vezes, desvinculadas da origem técnica do problema.

O peso da interpretação: entre garantia, prescrição e responsabilidade

A jurisprudência tem reconhecido que o prazo de cinco anos do art. 618 do Código Civil não é decadencial, mas um prazo de garantia mínima. Assim, se o defeito surge dentro desse período, a pretensão de reparação pode ser proposta até dez anos após sua constatação, com base no art. 205. 

O raciocínio consolidado em julgados  recentes do STJ dá amplitude à tutela do adquirente, mas também cria um campo de incerteza para os agentes do setor.

O resultado é um ambiente em que vícios de natureza completamente distinta são tratados sob a mesma lógica, e em que o tempo de exposição à responsabilização ultrapassa o ciclo natural de manutenção e uso da edificação.

 Essa homogeneização, embora bem-intencionada, desconsidera a diferença entre defeitos de projeto, falhas de execução, desgaste natural e ausência de manutenção pelo usuário — todos tratados, na prática, como “vício construtivo”.

A importância de distinguir causas e responsabilidades

O debate contemporâneo sobre vícios construtivos não pode ignorar que a durabilidade de uma edificação depende de responsabilidades compartilhadas.

Construtoras e incorporadoras têm o dever de entregar obras seguras, executadas conforme normas técnicas e com materiais adequados. Mas, uma vez entregue o empreendimento, o papel do usuário e do condomínio se torna igualmente relevante.

É justamente nesse ponto que a Norma de Inspeção Predial NBR 17170/2022 ganha importância. Ela reforça a cultura de manutenção preventiva e atribui ao condomínio — e, portanto, aos seus representantes — a obrigação de realizar inspeções periódicas e registrar as condições de desempenho do imóvel.

Essa prática técnica, se bem implementada, reduz a judicialização e permite identificar precocemente anomalias que podem ser sanadas antes de evoluírem para litígios.

Ao trazer parâmetros claros de inspeção, periodicidade e classificação das anomalias, a NBR 17170 introduz um padrão de corresponsabilidade: a construtora responde por falhas construtivas, mas o condomínio responde pela conservação e manutenção adequada da edificação.

Instabilidade jurisprudencial e necessidade de revisão legislativa

O tratamento judicial do tema, contudo, ainda carece de uniformidade. Em julgados recentes, o STJ tem oscilado entre decisões que privilegiam o consumidor e outras que reconhecem a necessidade de limites objetivos à responsabilização.

Essa falta de coerência — ora qualificando o prazo do art. 618 como garantia, ora como responsabilidade civil — tem efeitos concretos: compromete o planejamento jurídico e financeiro das empresas e gera distorções na aplicação prática da lei.

O quadro se agrava quando as decisões ignoram a diferença entre vícios estruturais e vícios funcionais ou de manutenção, enquadrando todos sob o mesmo regime de responsabilização. Essa generalização, além de tecnicamente imprecisa, incentiva a banalização das ações e desestimula práticas preventivas, já que a reparação judicial tende a se tornar o caminho mais fácil.

Uma revisão legislativa que esclareça a natureza e os prazos aplicáveis aos vícios construtivos — distinguindo o que é defeito de construção, o que é desgaste natural e o que decorre de uso indevido — seria um passo essencial para restaurar o equilíbrio entre proteção e previsibilidade.

Prevenir é mais eficaz do que litigar

Enquanto a legislação não se ajusta, o caminho mais seguro é o da prevenção jurídica e técnica.

Para as incorporadoras e construtoras, isso significa adotar políticas robustas de controle de qualidade, manter documentação detalhada, realizar inspeções independentes e registrar todas as etapas do pós-obra.

Para os usuários, significa seguir os manuais de manutenção e adotar rotinas de inspeção predial conforme os parâmetros da NBR 17170.

A cultura de manutenção, ainda pouco valorizada no Brasil, precisa ser tratada como parte integrante da vida útil da edificação.

Ignorá-la é alimentar o ciclo vicioso da judicialização — em que o Judiciário substitui a gestão técnica da edificação, e o tempo de uso se confunde com a origem do vício.

Conclusão

O debate sobre os vícios construtivos não é apenas jurídico, mas cultural.

A responsabilidade pela durabilidade das edificações não pertence a um único ator, e a ideia de que toda falha é culpa da construtora distorce o equilíbrio da relação.

A jurisprudência do STJ, ao ampliar o conceito de responsabilidade civil no setor, impôs às empresas um desafio duplo: prevenir melhor e provar mais.

Mas, sem uma diferenciação clara entre defeito, desgaste e mau uso, o risco é que a proteção legítima ao consumidor se transforme em um fardo desproporcional ao empreendedor — e, em última análise, ao próprio mercado imobiliário.

A consolidação de práticas de manutenção e inspeção predial, aliada a um ambiente jurídico mais estável, é o caminho para que a relação entre construtor, incorporador e adquirente seja mais equilibrada, previsível e sustentável.

 

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