ITBI hoje: o que mudou, o que ainda está em jogo e seus reflexos no planejamento sucessório
O Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) sempre teve natureza municipal e, por isso, costuma refletir a diversidade de práticas tributárias no Brasil. Durante anos, sua cobrança parecia um procedimento administrativo de rotina. Contudo, as recentes decisões do STJ e do STF transformaram o ITBI em um tema central nas discussões tributárias, societárias e sucessórias. Hoje, compreender como o imposto deve ser calculado, quando é possível obter imunidade e quais estratégias reduzem riscos tornou-se indispensável para quem atua em planejamento patrimonial e sucessório, especialmente em estruturas que envolvem holdings familiares e reorganizações empresariais com bens imóveis.
Base de cálculo: o fim dos “valores de referência” e a valorização do valor de mercado
Por muito tempo, a cobrança do ITBI baseava-se em valores padronizados definidos unilateralmente pelos municípios — o chamado “valor de referência”, quase sempre superior ao preço efetivo da transação. Na prática, isso gerava bitributação disfarçada e contrariava os princípios da legalidade e da capacidade contributiva, pois o contribuinte era obrigado a pagar sobre um montante que nem sempre refletia a realidade econômica da operação.
Em março de 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pacificou o tema ao julgar o Tema Repetitivo nº 1.113 (REsp 1.937.821/SP). A Corte definiu que: “A base de cálculo do ITBI é o valor de mercado do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não sendo vinculante o valor venal do IPTU nem o valor de referência fixado pelo município.”
Além disso, o STJ reconheceu que o valor declarado pelo contribuinte goza de presunção de veracidade, e que o fisco só pode afastá-lo mediante processo administrativo específico, com observância do art. 148 do CTN e garantia do contraditório.
Essa decisão representou uma inflexão histórica: o ITBI deixou de ser um imposto sujeito a arbitrariedades automáticas e passou a exigir fundamentação técnica. Hoje, qualquer discordância deve ser precedida de avaliação individualizada do imóvel, preferencialmente com laudo técnico e oportunidade de defesa. Quem pagou ITBI com base no “valor de referência” pode pleitear restituição do indébito dentro do prazo de cinco anos, desde que comprove o preço real e apresente os documentos do lançamento.
Imunidade do ITBI: proteção constitucional nas integralizações e reorganizações
A imunidade do ITBI prevista no art. 156, §2º, I, da Constituição Federal é um dos instrumentos mais relevantes para quem estrutura holdings familiares ou reorganizações societárias com bens imóveis. O dispositivo prevê que o imposto não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, salvo se a atividade preponderante da empresa for imobiliária.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 796 (RE 796.376/SC), consolidou dois pontos fundamentais: (1) a imunidade não se aplica ao valor que exceder o capital efetivamente integralizado — apenas o valor correspondente ao capital social subscrito está protegido; (2) a análise da atividade preponderante não se aplica à hipótese de integralização de capital. Essa interpretação garantiu segurança jurídica às holdings patrimoniais, que utilizam a integralização de imóveis como etapa inicial do planejamento sucessório, sem sofrer a incidência do ITBI.
Em 2025, o STF deu novo passo ao iniciar o julgamento do Tema 1.348 (RE 1.495.108/SP), que busca definir os contornos exatos da imunidade nas reorganizações posteriores à integralização. O voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, foi favorável aos contribuintes, reconhecendo que a imunidade deve ser interpretada de modo teleológico — com base na finalidade constitucional de estimular a atividade econômica e a livre organização empresarial. O julgamento foi suspenso por pedido de vista, mas a tendência é de manutenção da amplitude da imunidade.
Aplicação prática nos municípios: avanços, resistências e estratégias defensivas
Apesar dos entendimentos vinculantes, a prática ainda revela forte disparidade entre os municípios. Enquanto capitais como São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte já adequaram seus sistemas para permitir a declaração do valor real e a impugnação digital, municípios de menor porte ainda mantêm sistemas automáticos baseados no “valor de referência”.
Essas distorções obrigam os contribuintes a adotar estratégias preventivas: apresentar laudos de avaliação independentes, registrar comunicações formais com o fisco e, se necessário, ingressar com mandado de segurança para suspender cobranças indevidas.
No caso das integralizações, a resistência é ainda maior. Diversas prefeituras negam a imunidade sob o argumento de que a operação teria “finalidade simulada” — o que, na maioria das vezes, carece de fundamento. Por isso, o planejamento documental é essencial: atos societários bem redigidos, com demonstração contábil clara do capital subscrito e integralizado, blindam a operação contra autuações futuras.
Tendências e evolução normative
O cenário atual aponta para uma profissionalização da tributação imobiliária municipal. As decisões do STJ e do STF forçaram os entes locais a adotar procedimentos mais técnicos, baseados em avaliação e contraditório, substituindo a prática dos lançamentos automáticos.
Alguns municípios já estudam revisar suas leis do ITBI, adequando-se à tese do Tema 1.113 e incorporando mecanismos de transparência nos sistemas eletrônicos de declaração e impugnação. Do ponto de vista legislativo, há discussão sobre uma lei complementar nacional que estabeleça parâmetros uniformes para o ITBI — tema que deve ganhar força com a regulamentação do novo sistema tributário (EC 132/2023), especialmente para harmonizar o conceito de “valor de mercado” entre os entes federativos.
O ITBI dentro do planejamento sucessório
O ITBI não atua isoladamente. Ele se insere no conjunto de tributos que interagem diretamente com a sucessão patrimonial, ao lado do ITCMD e do IR sobre ganho de capital. Assim, compreender sua incidência é crucial para desenhar estruturas sucessórias eficientes e seguras.
Exemplos:
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Venda entre herdeiros ou familiares: sujeita ao ITBI, com base no valor real da transação.
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Doação pura e simples: sujeita ao ITCMD, de competência estadual.
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Integralização de imóveis em holding familiar: normalmente imune, conforme Tema 796.
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Reorganizações societárias: podem ser imunes ou neutras, dependendo da operação e da manutenção do objeto social.
O desafio é que cada forma de transmissão possui reflexos fiscais, societários e sucessórios distintos. Um bom planejamento deve combinar laudos de avaliação, atas societárias detalhadas e cronogramas tributários coerentes, evitando sobreposição de incidências e garantindo equilíbrio entre eficiência fiscal e segurança jurídica.
Conclusão
O ITBI, antes visto como um tributo burocrático, tornou-se um ponto de atenção estratégica no planejamento patrimonial e sucessório. As decisões do STJ e do STF representaram uma verdadeira virada de paradigma: substituíram presunção por técnica e arbitrariedade por procedimento.
Hoje, mais do que nunca, quem atua na advocacia imobiliária, societária ou sucessória precisa dominar as nuances do ITBI — desde a correta formação da base de cálculo até a análise das hipóteses de imunidade. O futuro tende a consolidar um modelo mais técnico, previsível e equilibrado, em que a boa documentação e o planejamento antecipado serão as principais garantias de tranquilidade tributária e de continuidade patrimonial entre gerações.