27/11/23 por Pedro Garcia em Artigos , Direito Civil

Contrato de convivência: limites e regras da autonomia privada no Direito Civil

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A autonomia privada, um dos pilares do direito civil, traduz-se na liberdade do sujeito de direito de definir sua vida particular. Trata-se de um atributo essencial para o exercício do poder de autodeterminação inerente ao ser humano. 

Partindo desse pressuposto, fazendo alusão à autonomia privada, o artigo 421-A do Código Civil expressa que, em regra, os contratos civis presumem-se paritários e simétricos, sendo garantido aos contratantes o direito de estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas. Portanto, a liberdade contratual é a regra do negócio jurídico. 

No entanto, como não se pode olvidar, essa liberdade pode sofrer e sofre restrições. Uma delas concerne à observância das normas de ordem pública e ao princípio da função social dos contratos, conforme elucida o próprio artigo 421 do referido diploma legal. 

Dessa forma, trazendo o tema para o assunto aqui tratado, é preciso ter em mente que os negócios jurídicos não envolvem somente questões patrimoniais - apesar de ser esse o intuito maior do ramo do Direito privado -, mas, tambem, extrapatrimoniais, o que inclui relações familiares.

Nesse sentido, o contrato de convivência nada mais é do que um documento em que as partes (companheiros) podem utilizar para estabelecer regras e acordos específicos para o seu relacionamento, como o regime de bens que vigorará e o termo inicial da união. 

Contrato de Convivência: Regras e limitações na União Estável

A previsão desse instituto se encontra no artigo 1.725 do Código Civil, que diz que para as uniões estáveis aplica-se o regime da comunhão parcial de bens, salvo contrato escrito entre os companheiros

Apesar da possibilidade, deve-se observar, no entanto, que uma vez que o contrato de convivência versa sobre normas de Direito de Família (e, portanto, muitas delas cogentes), não se pode estipular cláusulas que contrariam a própria natureza do instituto. 

O contrato de convivência, outrossim, não é o ato constitutivo da união estável, isto é, ele não “cria” a união estável, mas apenas a declara. Tanto é verdade que podem as partes estipular que a união teve seu início antes da assinatura do documento, prevendo a retroatividade de suas disposições, abrangendo bens particulares havidos anteriormente; quanto estipular o seu início a partir da lavratura ou assinatura do documento. 

Em suma, o contrato de convivência é destinado para aqueles que querem estabelecer uma vida comum, publicamente perante a sociedade, porém, não possuem interesse (pelo menos momentâneo) no casamento, mas querem regulamentar as disposições patrimoniais de sua união para resguardo em caso de uma possível separação. 

Nessa esteira, o meio adequado para que o casal disponha sobre o regime de bens que regulamentará a união é o contrato, que pode ser particular ou público (escritura). Para maior segurança jurídica, este último é o instrumento mais indicado. 

Nos termos do artigo 1º-A do Provimento 141 do Conselho Nacional de Justiça, o título consistirá em declaração de ambos os companheiros perante o ofício de registro civil das pessoas naturais de sua livre escolha, com a indicação de todas as cláusulas admitidas nos demais títulos, inclusive a escolha de regime de bens, na forma do art. 1.725 do Código Civil, e de inexistência de lavratura de termo declaratório anterior. 

 Inovações Legais e Correntes Doutrinárias Emergentes

Nesse sentido, em se tratando de escritura pública, surge nova corrente doutrinária que milita acerca da possibilidade de estipular cláusula de renúncia à concorrência sucessória entre os companheiros, mediante declaração expressa de ambos os conviventes. 

Explico: em razão da decisão em repercussão geral do Recurso Extraordinário 878.694/MG, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, de 10.05.2017, do Supremo Tribunal Federal, o companheiro foi incluído na ordem de vocação hereditária do artigo 1.829 do Código Civil. 

Em decorrência do decisum, em termos sucessórios, a união estável foi equiparada ao casamento. Portanto, da mesma forma como ocorre com o cônjuge, em havendo a morte de um dos companheiros o companheiro sobrevivente herdará em concorrência com os descendentes e ascendentes do falecido. 

Assim, a questão levantada pela citada corrente doutrinária emergente é que o regime da união estável parece não atender, ou em certa forma atrapalhou o relacionamento amoroso entre as pessoas. Pessoas essas que possuem o desejo de se manter em um relacionamento, mas que, devido ao receio de, em sua morte, seus descendentes terem que dividir sua herança com o companheiro, preferem encerrar, ou sequer iniciar um relacionamento.  

Nesse entendimento, como um dos pioneiros no assunto, o Estado do Rio de Janeiro reconheceu esse novo modo de pensar e recentemente foram publicadas novas normas da Corregedoria Geral da Justiça do Rio de Janeiro - Parte Extrajudicial, que autorizam expressamente a previsão dessa cláusula:

Art. 390, § 3º. A cláusula de renúncia ao direito concorrencial (art. 1.829, I, do CC) poderá constar do ato a pedido das partes, desde que advertidas quanto à sua controvertida eficácia.

Tal cláusula nasce como uma esperança àqueles que desejam se relacionar e ter ao menos a chance de, no futuro, ter o seu desejo respeitado. Ora, se as partes são maiores, capazes e estão de acordo quanto ao desejo de não comunicar patrimonio, mediante declaração pública, feita de livre e espontânea vontade, é um tanto quanto desarrazoado a lei lhes impor tal efeito.

Assim, parte da doutrina começa a mudar seu posicionamento, até mesmo em respeito à própria instituição familiar, pois, aos poucos, o dirigismo estatal nas relações privadas desestimula aqueles que querem estabelecer um relacionamento duradouro, pois entre se relacionar e proteger seu patrimônio, por questões lógicas escolhem este último.

Em suma, atualmente existem duas correntes notariais sobre o tema: há tabeliães que não aceitam a inserção da cláusula, pois, firmados pelo posicionamento clássico, entendem a disposição tratar de negociação de herança de pessoa viva, portanto, nula; e tabeliães que aceitam a inclusão, contudo, com menção expressa de que se trata de uma condição futura (mudança do entendimento jurisprudencial ou legal ao tempo da morte).

Como exemplo da primeira corrente de pensamento, e fazendo um contraponto ao entendimento da Corregedoria Geral da Justiça do Rio de Janeiro, o Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão recente, de setembro de 2023, em votação unânime, concluiu não ser possível estabelecer cláusula de renúncia à concorrência sucessória, por haver lesão ao artigo 426 do Código Civil.

Com uma visão estritamente legalista, sustentou o Desembargador que muito embora se reconheça a existência de posições doutrinárias em sentido contrário, em se tratando de registros públicos, deve o operador se ater unicamente à Lei positivada, de modo que, da forma como se apresenta (com cláusula de renúncia), o título não comporta registro, sendo nulo de pleno direito.

Portanto, o tema está sendo bastante discutido e vem cada vez mais ganhando enfoque na seara de família e sucessória. Aguardemos os novos posicionamentos, sobretudo, do Superior Tribunal de Justiça. 

 Uniões Estáveis: Requisitos, Equiparação ao Casamento e Desafios Legais

Superado esse ponto, para fins de se evitar esse imbróglio jurídico, muitos pensam em solucionar a questão com um simples contrato de namoro. O namoro, como se sabe, não sujeita as partes às obrigações que decorrem de um casamento ou união estável, não havendo falar em solidariedade familiar e confusão patrimonial.  

Acontece, no entanto, que devido a abertura do conceito de união estável, sem regras objetivas e determinadas, tem-se uma linha muito tênue entre ela e o namoro, resultando em uma insegurança jurídica muito grande aos contraentes. 

Ora, futuramente, havendo a morte de um deles (ou mesmo em vida), mesmo que se trate de um namoro, nada impede que o sobrevivente proponha ação judicial para reconhecimento de união estável, alegando que a relação entre eles vivida constitui elemento de família, de cuja decisão caberá, ainda, a um terceiro totalmente alheio à situação, o juiz. 

Dessa forma, a fim de neutralizar esse risco, muitos que possuem um relacionamento informal preferem, desde logo, firmar escritura pública de união estável (com separação de bens) para que assim possam saber que, ao menos em vida, seus bens estarão assegurados contra qualquer tipo de comunicação. 

Por outro lado, é verdade que, na morte, o companheiro herdará em concorrência com os descendentes, o que parte da doutrina, em atenção aos anseios sociais, como dito, parece não se conformar. 

Além disso, a par dos seus requisitos, conforme se verá no parágrafo seguinte, a união estável é uma situação de fato, isto é, independe de manifestação de vontade. Estando os requisitos preenchidos, estará configurada a união, ainda que uma das partes não queira. 

Nos termos do artigo 1.723 do Código Civil, “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

Conforme se extrai do dispositivo, são requisitos para o reconhecimento da união estável: 

1. convivência pública;
2. contínua;
3. duradoura;
4. com objetivo de constituir família 

Conforme se observa, a lei não determina um prazo de convivência mínimo para que se caracterize o instituto, utilizando uma expressão ampla “contínua e duradoura”, que transmite, no entanto, uma ideia de perenidade no tempo e um prazo minimamente razoável para se considerar “duradoura”. 

Outro ponto, é que a união deve ser pública, ou seja, deve-se comprovar uma repercussão sólida perante a sociedade, um reconhecimento externo de que de fato os conviventes têm um compromisso um para com o outro. 

Por fim, e não menos importante, sendo considerado, inclusive, o núcleo do instituto: o objetivo de constituir família. Para o enquadramento neste requisito, apesar de não ser obrigatório os companheiros terem residência comum e tampouco filhos, deve-se verificar entre os companheiros desígnios volitivos de formação de família. 

Portanto, fato é que não há dúvidas quanto aos requisitos caracterizadores da união estável e sua equiparação (sucessória) ao casamento. No entanto, no que tange à liberdade da autonomia privada frente às normas cogentes do Direito de Família e das Sucessões é que o debate carece de amadurecimento e discussão, não havendo, ainda, uma posição definida na doutrina e jurisprudência brasileira.

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