Distribuição Desproporcional de Lucros e a Cobrança de ITCMD: Entre o Propósito Negocial e o Animus Donandi

À luz do crescente uso de instrumentos de planejamento patrimonial no contexto das sociedades familiares, observa-se a emergência de um tensionamento relevante: a incidência do ITCMD sobre distribuições desproporcionais de lucros. Tal controvérsia não apenas desafia os limites entre doação e exercício legítimo da autonomia contratual, mas também revela um movimento de ampliação interpretativa por parte do fisco estadual, notadamente em São Paulo.
O julgamento proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em recente julgado (Apelação nº 1089011-58.2023.8.26.0053) torna evidente o conflito hermenêutico instaurado entre a legalidade da distribuição desproporcional de lucros, respaldada pelo art. 1.007 do Código Civil, e a tentativa de requalificação fiscal dessas operações como doações disfarçadas, sujeitas à incidência do ITCMD. Conforme consignado no voto condutor do acórdão, "a distribuição desproporcional de lucros, sem motivação negocial plausível, e com evidente liberalidade em favor de descendentes, caracteriza doação e atrai a incidência do ITCMD, conforme disciplina a Lei Estadual nº 10.705/2000". A Corte paulista, ao identificar ausência de propósito negocial robusto na operação societária em análise, altera a interpretação até então pacífica, colocando em risco a segurança jurídica e a autonomia contratual. Essa requalificação tributária, sustentada por argumentos vinculados à substância do ato e ao animus donandi, encontra respaldo em dispositivos como o art. 116, parágrafo único, do CTN, mas carece de uniformidade jurisprudencial nacional, especialmente diante de posicionamentos divergentes emanados de outros tribunais estaduais.
Diante disso, impõe-se o exame dos fundamentos legais aplicáveis, da moldura jurisprudencial contemporânea e da necessária conformação documental que possa sustentar a validade dessas operações perante o fisco e o Poder Judiciário.
Conflito entre autonomia contratual e competência tributária.
O embasamento jurídico do tema repousa sobre dois pilares: a liberdade dos sócios para definir, por contrato, como se dará a distribuição dos lucros (art. 1.007 do Código Civil) e a competência dos Estados para instituir o ITCMD, conforme prevê o art. 155, inciso I, da Constituição Federal, regulamentado no Estado de São Paulo pela Lei nº 10.705/2000.
O conflito surge quando o fisco interpreta distribuições desproporcionais como doações disfarçadas, alegando que a ausência de propósito negocial justifica a cobrança do imposto.
No julgamento do caso Davilar, o TJSP reconheceu como doação a distribuição de mais de R$ 48 milhões a dois sócios minoritários (com 1% de participação cada), filhos dos sócios majoritários que detinham 98% das quotas sociais. A decisão destacou a ausência de atuação administrativa dos beneficiários e a inexistência de elementos objetivos que justificassem a desproporcionalidade.
Nesse contexto, a Corte sustentou a presença de animus donandi como fundamento jurídico predominante, desprezando a forma contratual em nome da substância econômica da operação. Essa guinada reforça o entendimento de que a liberdade contratual encontra limites quando dissociada de uma finalidade econômica demonstrável — especialmente em estruturas familiares.
Jurisprudência divergente e insegurança jurídica.
O entendimento firmado pelo TJSP não é unânime. Tribunais como o TJSC e o TJPR têm reafirmado a legitimidade da liberdade negocial nas sociedades limitadas, afastando a incidência de ITCMD sempre que há previsão contratual e deliberação formal dos sócios, mesmo sem proporcionalidade ao capital social (exemplo: TJSC, processo nº 5005960-13.2022.8.24.0008).
Essa divergência revela a instabilidade jurisprudencial atual e reforça a necessidade de pacificação da matéria pelo Superior Tribunal de Justiça. Importante destacar que não há, até o momento, qualquer norma legal que proíba ou imponha critérios específicos à distribuição desproporcional de lucros. Diante desse silêncio normativo, não cabe ao intérprete — seja o julgador, seja a autoridade fiscal — presumir a ocorrência de liberalidade com base exclusivamente na ausência de proporcionalidade.
A recente rejeição do Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, que pretendia justamente instituir a cobrança de ITCMD sobre tais distribuições, reforça essa realidade. Se o legislador optou por não tributar essas operações, impõe-se a prevalência da legalidade, vedando-se ao fisco a criação de obrigações tributárias por meio de interpretações ampliativas.
Recomendações de conformidade preventiva.
Diante do cenário de insegurança jurídica, recomenda-se a adoção de práticas de governança e documentação societária capazes de mitigar riscos. Entre as principais medidas estão:
1. Inclusão de cláusula contratual específica, com base no art. 1.007 do Código Civil, permitindo expressamente a distribuição desproporcional de lucros;
2. Deliberação formal em ata, com justificativa econômica clara, vinculada à atuação, performance, ou contribuição estratégica dos sócios;
3. Geração de documentos comprobatórios que evidenciem o papel ativo dos sócios beneficiários (atas, relatórios, registros de participação, contratos etc.);
4. Alinhamento entre atos societários e a realidade operacional da empresa, para evitar incoerências entre gestão formal e substância fática;
5. Integração entre a política de distribuição de lucros e o planejamento sucessório, evitando que operações empresariais sejam vistas como antecipações informais de herança.
Conclusão.
A distribuição desproporcional de lucros não deve ser confundida com doação. Quando realizada com fundamento contratual, justificação negocial e respaldo documental, representa instrumento legítimo de organização societária e patrimonial.
Nesse novo paradigma, não basta apenas estar certo: é preciso parecer certo, demonstrando consistência entre a forma jurídica e a realidade econômica.
Reforça-se, por fim, que a ausência de norma legal específica sobre o tema — somada à rejeição do PLP nº 108/2024 — impõe uma postura legalista e técnica por parte da Administração Tributária e do Poder Judiciário. A incidência do ITCMD sobre distribuições desproporcionais de lucros só pode ocorrer com fundamento claro na lei, sob pena de violação ao princípio da legalidade e à estabilidade das relações societárias no Brasil.